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Piratas foram os primeiros historiadores dos games

Frank Cifaldi conta como passou de pirata para autoproclamado historiador de videogames
Escrito por Pedro Falcão
13 min de leituraPublished on
Frank Cifaldi no documentário Paralelos

Frank Cifaldi no documentário Paralelos

© Red Bull

Depois de assistir a dezenas de palestras e entrevistas com Frank Cifaldi na internet, você começa a entender o significado do sorriso suave no rosto do especialista toda vez que ele começa a falar sobre games antigos e raros. Seja popularizando os emuladores em uma apresentação na última GDC, ou contando sobre a importância dos jogos da Turma da Mônica no documentário Paralelos, Frank sabe que tomou o rumo mais improvável até se tornar um dos maiores especialistas em história dos videogames do mundo.
"Eu não sei exatamente qual é o meu trabalho ainda”, Frank começou a nossa entrevista rindo. "Mas eu sei que tenho esse trabalho há 16 anos.” Desde quando ganhou seu primeiro computador aos 18 anos, o especialista foi atrás de aprender tudo sobre a história dos jogos mais incomuns já lançados. "Foi assim que eu comecei, na real. Nos anos 90, eu fazia 'dump' [passar os arquivos da mídia para um computador] de jogos de Super Nintendo e colocava na internet para todos poderem baixar.”
Piratear jogos antigos não era o hobby mais comum das crianças na época, mas Frank tinha uma visão diferente da sua atividade. "Eu tentei descobrir se existia alguém tentando preservar os videogames – e sim, existiam pessoas que faziam isso, mas a gente não os chamava de arquivistas, ou historiadores”, contou. "Nós os chamávamos de piratas. E eu queria ser um."
Frank apresentando seu projeto na Game Developers

Frank apresentando seu projeto na Game Developers

© GDC

De pirata a historiador
"Minha carreira na indústria de games começou sendo um pirata!”, ele diz, evocando mais uma vez o sorrisinho no canto da boca. Frank tem consciência de que, apesar de hoje ser especialista na área, ele entrou na indústria dos games pela porta dos fundos. "Eu era um desses caras na internet que pegavam cartuchos da Nintendo, digitalizavam e colocavam pras pessoas baixarem. Essa prática me fez ficar interessado na história dos videogames.”
Logo quando ganhou seu primeiro computador, Frank foi atrás de jogos que tinha jogado na infância para se reconectar com os games de uma nova maneira. "Como muitas pessoas da minha idade, a gente achava que aquilo era um brinquedo, não um hobby que você pratica apaixonadamente. Era só uma brincadeira, então quando eu cresci, deixei de lado.”
O especialista contou que mudou de ideia quando começou a participar de fóruns sobre jogos de NES. "Com a internet, eu comecei a caçar jogos antigos. E foi com esses games que eu descobri uma tecnologia mágica, chamada emulação”, lembrou.
UltraHLE, emulador de Nintendo 64

UltraHLE, emulador de Nintendo 64

© RealityMan/Epsilon

"Era 1998, 1999 e a minha cabeça explodiu com a ideia de que você podia baixar jogos antigos da Nintendo e jogar no seu computador. Simplesmente funcionava. Então, me interessei muito em reviver a minha juventude jogando esses games antigos”, disse Frank, que imediatamente começou a participar ativamente dessa comunidade recém descoberta. "Eu comecei a minha carreira como pirata, sempre tive um enorme interesse em história dos videogames. Foi porque eu pirateava esses jogos que comecei a pensar sobre as pessoas que fizeram os games, a história por trás deles.”
Frank entendeu o enorme trabalho que tinha pela frente. Não seria possível catalogar todos os jogos já lançados se a maioria das pessoas preservavam apenas os jogos mais populares, que sempre estavam disponíveis nos sites de ROMs de emuladores. “Comecei a pensar em quais eram os jogos que mais tinham chances de desaparecer”, lembra o especialista, na tentativa de focar seus esforços. ”Cheguei à conclusão de que os jogos mais raros eram aqueles que nunca foram lançados, os que foram desenvolvidos, mas nunca vendidos nas lojas. Pelo menos pro NES, existiam muitos jogos desse tipo."
O trabalho dele era de um arqueólogo digital. O primeiro passo era pesquisar os jogos raros do consoles da Nintendo. ”Comecei a pesquisar e arquivar os jogos de NES que nunca foram lançados. Também fiz questão de ir atrás das pessoas que trabalharam nesses jogos, entrevista-los e perguntar sobre as histórias por trás do jogo e por que ele não foi lançado.” Ele sabia que também tinha que mostrar os resultados do seu esforço e a suas descobertas. "Foi então que abri um site chamado Lost Levels”, disse, fazendo uma observação que sim, ele sabe, o site está super desatualizado, porque ”Não cuido dele há anos, mas ele continua de lá".
Agora que a transição de pirata a historiador está completa, Frank está dando passos em uma nova direção. "Estou começando uma ONG, que é o que eu queria fazer há 16 anos, que é ajudar a salvar a história dos games”, contou animado, mas com direito a bronca: "Nós fazemos isso muito mal ainda”.
A importância da preservação (e emulação)
"Quando eu era jovem, assisti um documentário sobre preservação do cinema e, nesse filme, eles falavam de um número especulado pela Film Foundation, que dizia que uns 80% dos filmes produzidos antes de 1930 não existem mais”, disse Frank, arregalando os olhos. "Simplesmente não existem mais, nunca mais, porque ninguém na época pensou que eles deveriam ser preservados. Eles achavam que ninguém se importaria com aquelas cópias depois que eram usadas”, ele contou, ainda chocado. "Isso me assustou. Eu era uma criança, mas aquilo me assustou. A ideia de que um filme não existia mais era algo dava muito medo no pequeno Frank (risos)."
Frank decidiu que não deixaria que a história dos videogames seguisse o mesmo destino do cinema. Vasculhando fóruns e sites de leilões, o especialista começou a descobrir histórias nunca contadas sobre os jogos. "A maioria dos jogos produzidos em Taiwan não estavam disponíveis online, não tinha ninguém que estivesse preservando os jogos de lá”, disse, "Então acabei fazendo isso. Encontrei os últimos jogos licenciados que ainda não estavam online. Naquela época também era difícil de encontrar os jogos lançados exclusivamente no Brasil, como o Crime Busters, um jogo pro NES que só foi lançado no Brasil e apenas recentemente foi digitalizado”.
Crime Busters, jogo lançado pela Gradiente pro Pha

Crime Busters, jogo lançado pela Gradiente pro Pha

© Flipper Games

Com essas pequenas, mas constantes descobertas, desenterrar os jogos se tornou algo especial para Frank, que finalmente tinha entendido a importância de preservar o passado. “Pra mim, digitalizar os jogos ajudou muito a preservar a história dos games. Eu acho que preservar um game vai além de apenas conseguir jogar os seus dados em qualquer plataforma. Acho que muita gente pensa em preservar os jogos e automaticamente pensa em ‘Pegar o jogo, copiar os dados da mídia e colocar na internet’”, Frank explicou. "É uma parte importante do processo, talvez até seja a parte mais importante, mas pra mim um videogame é mais do que isso. Um videogame é tudo o que tem em volta dele, são as pessoas que o criaram, é a história do seu desenvolvimento, é o contexto no qual ele foi lançado, é a embalagem que veio junto.”
A visão de preservar a história não poderia terminar apenas no seu site, Lost Levels, que crescia cada vez mais. Ele precisava ir além. "O que eu poderia fazer pelos jogos da mesma maneira que uma instituição como o Film Foundation faz pelos filmes?”, ele se perguntou. E assim, ele fundou a Video Game History Foundation. "É isso que estamos fazendo agora. Esse é o meu foco agora. É literalmente o meu trabalho descobrir a melhor maneira de preservar um jogo.”
Quanto mais pesquisava os jogos antigos, mais o seu trabalho mudava de pirataria para preservação. Mesmo assim, Frank não parece se incomodar com o estigma que a pirataria ainda carrega. "Preservar os dados dos jogos e disponibilizar tudo na internet é pirataria? É claro que sim!”, disse rindo. "Isso é pirataria. Mas muita coisa é pirataria. Pirataria é como salvamos as mídias. Em muitos casos, o melhor é não ligar muito pra esse termo.”
Apesar de apoiar o acesso à informação da maneira mais democrática possível, Frank sabe bem até onde vai o seu limite em relação ao assunto. "Não quero piratear coisas que sejam o ganha-pão de pessoas, mas pra mídias antigas, que já poderiam ter sido esquecidas, a pirataria pra mim é literalmente a única forma de salvá-las”, explicou. “Muitos jogos antigos tecnicamente ainda têm donos, que recebem pelos direitos autorais, mas em muitos casos – e olha que a gente pesquisou sobre isso –, muitos dos jogos que amamos e curtimos na infância, hoje os seus direitos autorais são uma bagunça, ou os donos desse direitos nem sabem que são donos, ou não se importam com a licença do jogo e tal. Então, a preservação dos games depende muito da pirataria.”
Por isso, Frank pede mais cuidado com o uso do termo. "Eu chamaria as pessoas que vêm digitalizando os jogos de ‘arquivistas'. Sim, eles também são piratas, e sim, algumas vezes eles decidem arquivar coisas que outras pessoas não arquivariam. Eu mesmo não arquivaria nada de menos de 10 anos, ou até mais que isso. Mas a preservação e a pirataria devem coexistir, lado-a-lado.”
O especialista explica que esse pirata, que ainda é mal visto pela sociedade como aquele que rouba de empresas e artistas, é uma construção moderna que vem do pânico das grandes companhias da indústria contra a emulação. Tudo começou no fim dos anos 90: "Minha teoria é que as companhias começaram a ligar emulação diretamente a pirataria em 1999, porque duas coisas aconteceram nesse ano: a primeira foi o lançamento do UltraHLE, que é um emulador de Nintendo 64 que podia rodar os jogos sem problemas, lançado em janeiro”. Era a primeira vez que as empresas viam os piratas como concorrentes. “Pra ter uma noção, o Ocarina of Time foi lançado só três meses antes, então logo depois do lançamento, você já podia jogar no seu computador. Isso era algo novo pros consoles. O segundo acontecimento foi um emulador do PlayStation pros computadores da Apple chamado Virtual Game Station.”
Virtual Game Station, emulador de PS para Mac

Virtual Game Station, emulador de PS para Mac

© Connectix

A criação desses emuladores tirou o sono dos altos executivos da indústria. Eles simplesmente não estavam acostumados com a possibilidade real dos seus lançamentos serem distribuídos gratuitamente pela internet. "No passado, a pirataria pra consoles era muito difícil”, explicou. "Tecnicamente, você conseguia piratear jogos do Super Nintendo e do Genesis [Mega Drive], mas era difícil pra cópia funcionar, porque você tinha que copiar o software num disquete com um aparelho especial, e pra rodar você tinha que ter esse aparelho também, junto com um cartucho extra pra destravar o console.” Frank suspirou. "Era muito complexo e muito difícil piratear um jogo nesses consoles. A quantidade de pessoas que conseguia piratear jogos de console antes de 1999 era minúscula.”
De repente, jogos de console e pra PC se tornaram facilmente pirateáveis através do computador, o que assustou bastante as empresas. "Afinal, porque as pessoas não pirateariam, se era possível?”
O império contra-ataca
Rapidamente, a indústria começou a se mexer para resolver a situação. “A Sony conseguiu processar a Virtual Game Station, na tentativa de provar que emular o PlayStation era ilegal”, contou Frank. "Mas é engraçado, porque não foi só a Sony que entrou nessa, já que a Nintendo e a Sega estavam ajudando a Sony a financiar todo esse processo contra os autores do Virtual Game Station, tentando provar pro juiz que o que eles estavam fazendo era ilegal, que emulação era errado.”
Sony processa criadores de emulador do PlayStation

Sony processa criadores de emulador do PlayStation

© Connectix

No fim, as coisas deram surpreendentemente certo. "O juiz disse que não existiam leis contra emulação e que a prática era legal. As empresas até argumentaram que o processo de engenharia reversa era proibido, mas o juiz disse que era possível, sim, não tinha problema.” A decisão do juiz foi fundamental para que a comunidade de emulação e preservação continuasse o seu trabalho.
"Então, foi definido por uma corte federal que emulação é legal”, lembrou Frank, com uma ressalva: “Mas, eu acho que a imagem que as empresas tinham do lado ilegal dessa tecnologia vem dessa época, porque a indústria queria travar uma guerra contra a emulação, que parecia estar prejudicando as vendas. Não era assim antes. De repente, estava todo mundo jogando Ocarina of Time no computador só três meses depois de ser lançado. Isso foi assustador.”
"É só uma questão de tempo até que abracemos a ideia de emuladores comerciais, mas algumas pessoas ainda não perceberam isso”, o especialista constatou. "Não é culpa pessoas também, especificamente no caso da Nintendo, que financia uma guerra aos emuladores desde então."
A solução, para Frank, é só uma questão de percepção. "A gente deveria pensar [nos emuladores] como ferramentas para jogar, em vez de ser só um jeito de facilitar a pirataria. Isso é errado. Claro, você pode usar emuladores pra piratear software, mas essa não é sua única função.”
Mega Man 6

Mega Man 6

© Nintendo

Curiosidades do mercado brasileiro
Na sua busca pelos jogos e histórias enterradas pela areia do tempo, Frank encontrou com alguns causos brasileiros. "Nos EUA, a Capcom publicou do Mega Man 1 ao 5. Planejaram também lançar o Mega Man 6, mas acabaram desistindo. Quando cancelaram o lançamento, a Nintendo decidiu comprar a briga”, relembrou Frank, empolgado. "A empresa disse que sabia como vender aquele jogo e decidiu fazer isso por conta própria. Com isso, o Mega Man 6 foi lançado pela Nintendo, não pela Capcom. Mas, se você vasculhar no Brasil, é possível encontrar cópias de Mega Man 6 com embalagens com o logo da Capcom. Essa seria a embalagem da versão americana do jogo, se ele tivesse sido lançado pela Capcom.”
"Minha teoria é que a Playtronic [joint venture entre a Gradiente e a Estrela], quando foi lançar o jogo no Brasil, tinha recebido essas embalagens com o logo da Capcom, então pra que imprimir caixas novas se já tinham essas? Por conta disso, só no Brasil você consegue encontrar um Mega Man 6 com o logo da Capcom, que tecnicamente não deveria existir.”
O especialista tece elogios apaixonados sobre a história dos games no Brasil, como fica claro na sua entrevista no documentário Paralelos. Mas ele faz críticas pertinentes à comunidade brasileira. "Eu não sei se existem muitos colecionadores de consoles e cartuchos brasileiros, mas espero que eles existam, porque eu acho que esses produtos sensacionais. As empresas de dentro do Brasil não tinham um sistema de distribuição bom fora do Brasil”, explicou. "A Gluk, por exemplo, fazia jogos não-oficiais pro NES em Taiwan, mas boa parte do software produzido por eles é raríssimo de se encontrar. A empresa também produzia no Brasil e alguns lançamentos da empresa eram exclusivos para o país. Aí eu pergunto, tem alguém no Brasil colecionando cartuchos da Gluk? Eu espero que sim.”
Frank ressalta a importância de celebrar a nossa própria história no mercado global de games. "Espero que as pessoas no Brasil não pensem em cultura do videogame tipo, ‘Ah, esses não são os jogos originais, então eles não valem nada. A gente quer os americanos e japoneses’. Os colecionadores no Brasil não devem se preocupar com o que veio de fora”, disse o especialista, fazendo um apelo. “É um desserviço ignorar a enorme riqueza de jogos exclusivos brasileiros que foram lançado no país.”
Antes de terminar a entrevista, Frank revela uma última curiosidade sobre os jogos brasileiros. "Outra coisa que eu acho bizarro sobre o Brasil: por alguma razão, o estado e a aparência dos cartuchos antigos é horrível. Não sei o que vocês fazem com esses jogos, se jogam lama, arranham no concreto e mordem ele depois, porque toda vez que eu vejo um cartucho brasileiro antigo, ele está medonho”, ele pergunta. "Sério, o que vocês fazem com os seus jogos?”