Se há algo que fãs de hip-hop gostam mais do que ouvir hip-hop é discutir sobre hip-hop. Em particular, sobre o que realmente define o género. 'The Teacha' KRS-One, de Boogie Down Productions, proclamou "Rap é algo que fazes, hip-hop é algo que vives" e esse continua a ser um ponto útil a ter em mente. O hip-hop e a maioria dos seus subgéneros podem ser definidos pelo local de onde é o artista e o seu estilo de vida, bem como pela sonoridade e o assunto.
O género desenrolou-se de maneiras fascinantes desde o seu nascimento no final dos anos 70, por isso aqui vai uma introdução aos estilos vibrantes que se desenvolveram desde então.
Backpack rap
Backpackers: obsessivos do hip-hop no final dos anos 90 que rejeitavam a comercialização do rap e os estilos mais polidos, menos intelectualmente provocantes que atingiram o sucesso mainstream, e ouviam apenas rap consciente ou underground. Este termo algo contestado refere-se ao estereótipo do fã que usava uma mochila repleta de livros de universidades, cadernos de rimas, tinta ou vinil.
Rawkus era uma das labels favoritas dos backpackers. Lançou clássicos de nomes como Mos Def e Company Flow antes de ser comprada pela Interscope, cometendo assim o pecado capital. Tudo o que diz respeito à label Def Jux, de El-P (alumni dos Company Flow e membro dos Run The Jewels), também é essencial. Os primeiros trabalhos do produtor Madlib, especialmente o álbum The Unseen do projeto Quasimoto, em que encarna o alter ego do sociopata Lord Quas.
Por onde começar: Mos Def - Mathematics
Boom bap
A essência do boom bap está no nome. O 'boom' do kick pesado seguido daquele 'bap' estaladiço do snare, normalmente num BPM moderado e sobrepostos ao restante instrumental, são a base do género. A fórmula é certeira: é praticamente impossível ouvir um som de boom bad sem abanar a cabeça.
Pode-se dizer que nos primórdios do hip-hop praticamente toda a música era boom bap, ainda que o termo não tenha entrado em circulação até os adlibs que fecham a faixa 'It's Yours', de T La Rock, em 1984. O som que descreve está no coração do hip-hop. Desde os primeiros breakbeats, passando pelas inovações do sampling de Marley Marl, até à era dourada do rap nova-iorquino, quando nomes como DJ Premier, Large Professor e Pete Rock dominavam o cenário com boom bap clássico.
Por onde começar: Gang Starr – Just To Get A Rep
Cloud rap
Um termo originalmente cunhado em 2010, na sequência das músicas de estética flutuante do 'Based God' Lil B, cloud rap rapidamente se tornou o rótulo para alguém que estivesse à procura de descrever uma nova onda de artistas que favorecia sonoridades atmosféricas abstratas, apropriadas a uma escuta introspectiva no quarto, ao invés da percussão mais tradicional do hip-hop. Entre os pioneiros do género estão nomes como Clams Casino, Main Attrakionz e A$AP Rocky.
Por onde começar: Main Attrakionz – Chuch
Conscious hip-hop
Em geral, hip-hop consciente pode referir-se a qualquer rap ou rapper considerado 'woke' consoante. Normalmente, é um rótulo que se usa com artistas que têm como foco principal consciencializar sobre os problemas sociopolíticos da sua geração e isso é algo que sempre esteve presente no hip-hop: desde as visões de pobreza urbana de Melle Mel, vocalista dos Grandmaster Flash And The Furious Five, em The Message, às meditações sobre dependência de substâncias de J Cole em KOD.
Pensa em KRS-One quando se denomina O Professor ('The Teacha') ou em artistas como Akala, Dead Prez, Talib Kweli e Boots Riley, que são igualmente reconhecidos como activistas e músicos. Por vezes, o termo também é usado para falar de raps ou artistas afrocêntricos, que têm como foco consciencializar as comunidades negras, como é o caso de Public Enemy, Paris ou X-Clan nos anos 90 e, mais recentemente, Kendrick Lamar na última década.
Por onde começar: Blackstar – Definition
Crunk
Durante um bom bocado nos anos 90, a palavra 'crunk' não era nada mais do que um pedaço de calão do 'dirty south', cujo significado era ficar excitado ou 'hyped'. Aparecia de vez em quando em todo o tipo de faixas, como Player's Ball, dos Outkast, ou Getting Crunk, da lenda do rap de Memphis Tommy Wright III. Em 1997, Lil' Jon & The Eastside Boyz efetivamente apoderaram-se da palavra para a eternidade com o lançamento de Get Crunk, Who U Wit - Da Album. Desse ponto em diante, crunk tornou-se sinónimo de beats orientados para o club marcados por meios-tempos, uma espécie de proto-trap com um 'je ne sais quois' de ameaçador. Mais importante ainda era a presença de um rapper, de preferência o Lil' Jon, a gritar ad-libs ou slogans como "represent your shit, motherf**ker" e "bounce your ass to the beat while you touch your feet".
Por onde começar: Lil Jon & The East Side Boyz – Get Low
Drill
2011. Chicago dá à luz o Drill e um ano depois impacta o mundo da música com o hino I Don't Like, de Chief Keef (que à data do lançamento da música tinha apenas 16 anos). Para alguém não familiarizado com o género, Drill pode ser indistinguível de trap. Musicalmente, pelo menos. A grande diferença está nos temas, no ênfase e na atitude. Enquanto que o trap está marcado pela temática e estética em torno da indústria dos narcóticos, o drill foca-se no relacionado mas distinto tópico da violência armada e guerra entre gangues, com flows agressivos pautados por batidas igualmente agressivas.
Por onde começar: Chief Keef – I Don’t Like ft. Lil Reese
Emo rap
Ainda que muito do hip-hop nos primórdios estivesse marcado por atitude macho ou até agressiva, pelo menos desde a I Need Love de LL Cool J que rappers apresentam um lado mais sensível na sua arte. No entanto, nunca se pode considerar emo rap, até porque não o é bem.
Primeiro, veio o sucesso de 808s & Heartbreak, de Kanye West, e o seu grande impacte cultural. Depois, a vulnerável sedução de Drake e o hedonismo de Future. Por esta altura o espírito melancólico estava normalizado no rap. Nos últimos anos, artistas como Lil Peep, XXXTentacion, Juice WRLD e Lil Uzi Vert incorporaram elementos musicais e líricos de emo rock no rap e criaram uma nova tendência.
Por onde começar: Lil Peep – Awful Things ft. Lil Tracy
Frat rap
Frat rap é música rap despreocupada que celebra o estilo de vida de festa associado ao estilo de vida das fraternidades universitárias dos EUA. Talvez o mais esclarecedor sobre este subgénero seja o facto de os seus pioneiros se terem distanciado dele assim que tiveram oportunidade. Asher Roth, cuja faixa I Love College arrancou o género em 2009, nunca mais fez uma faixa no mesmo registo. Mac Miller ajudou a definir frat rap nas primeiras fases da sua carreira, mas afogou os seus primórdios com uma constante evolução artística e criativa nas subsequentes fases da sua carreira. O frat rap aparenta ser um rito de passagem e não um plano a longo termo.
Por onde começar: Huey Mack - Call Me Maybe (Remix)
Gangsta rap
Música rap feita por ou sobre 'gangsters' e afetados pelo estilo de vida gangster. Quer olhes para o gangsta rap como um documentário honesto da vida de rua ou uma glamorização de escolhas de vida moralmente dúbias, se olharmos exclusivamente para o seu sucesso comercial temos pela frente um dos estilos mais significantes do hip-hop.
Uma das primeiras gravações que explicitamente tratou o tema da vida de gang foi PSK, de Schoolly D, em 1986. Dois anos depois, o movimento ganhou notoriedade global e gerou pânico moral com F**k The Police dos NWA. Quando o arquiteto do grupo, Dr Dre, lançou a sua estreia a solo, The Chronic, o género tinha já estabelecido um domínio que só cairía em 2007, quando o terceiro álbum de Kanye, Graduation, bateu em vendas o álbum Curtis, de 50 Cent, numa 'luta' altamente mediática.
Por onde começar: Dr Dre & Snoop Dogg – Deep Cover
Grime
Uma forma de música eletrónica nascida no início do século XXI em bairros e moradias sociais do este de Londres. Desde cedo e até hoje, a questão se grime se qualifica ou não como hip-hop é controversa. Muitos apontam as suas raízes no UK garage como prova de que é algo completamente diferente, mas é importante apontar que o próprio hip-hop tem raízes no funk e em de música de club, como o disco.
Na altura em que surge o grime o termo hip-hop estava muito associado ao rap mainstream ou ao estilo backpacker e nenhuma cena queria ter muito a ver com ele. Porém, há muitas evidências que sustentam o argumento de que o grime é uma forma de hip-hop: é música de rua, movida por raps e inventada por jovens músicos negros, com ênfase em batalhas líricas e uma reconhecida influência do rap americano (há várias mixtapes primordiais de grime que contam com beats de hip-hop americano). Controvérsias à parte, o grime é a mais distinta contribuição do Reino Unido à evolução do hip-hop.
Por onde começar: Dizzee Rascal – I Luv U
Horrorcore
Este é um subgénero que mergulha nos aspetos mais negros do gangsta rap, muitas vezes dando uma reviravolta sobrenatural. Bons exemplos são Phantom Of The Rapra, projeto do membro dos Geto Boys Bushwick Bill onde horror teatral é o foco, ou os primeiros trabalhos góticos dos Three 6 Mafia.
Por vezes o estilo pode parecer algo tonto (tem os trabalhos do grupo The Insane Clow Posse, de Detroit, ou as preocupações obscenas de Necro, de Brooklyn, como referência), mas há obras que são absolutamente essenciais. O catálogo dos Gravediggaz, desde o álbum de estreia, 6 Feet Deep, ao álbum final, Nightmare In A-Minor, são projetos que deves pôr na tua lista de álbuns a ouvir.
Hear it best in: Gravediggaz – Burn Baby Burn
Hyphy
Música eletrónica efervescente com uma boa dose de humor surreal e diversão imprudente. Hyphy nasceu na Bay Area da Califórnia no final dos anos 90 e foi a banda sonora das festas em que malucos e malucas faziam o belo do 'ghost ride the whip', colocando o carro em ponto neutro e deixando-o rolar enquanto saiam para dançar ao lado ou em cima do telhado.
O nome é um diminutivo de 'hyperactive' e foi cunhado por Keak Da Sneak em 1994, ainda que o género não tenha ganhado forma musicalmente até o veterano Mac Dre se ter reinventado como Thizzelle Washington e introduzido o mundo à 'thizz dance' ao longo de 10 álbuns, entre 1997 e 2004, ano da sua morte. O Hyphy rebentou numa escala mundial em 2006, com hits de E-40, The Federation, Too $hort, Mistah F.A.B e outros. O género perdeu expressão pouco depois, mas o seu espírito vive nos dias de hoje graças às produções de DJ Mustard e novo talento de Bay Area, como Kamaiyah e SOB x RBE.
Por onde começar: Mac Dre – Feeling Myself
Jazz rap
Quase 30 anos depois, a imagem definitiva de jazz rap ainda pertence a A Tribe Called Quest, mais especificamente Q-Tip na faixa Excursions, quando relembra os anos de adolescente com o verso "You could find the abstract listening to hip-hop, my pops always said it reminded him of bebop". E consegues perceber perfeitamente o que dizia o seu pai pela maneira como o flow de Q-Tip dança de modo ágil pelo baixo samplado e em loop de uma velha gravação de Art Blakey.
Não ajudou que os artistas na vanguarda do jazz rap estivessem em atividade numa altura em que o jazz era visto como um género de música de meia idade, se não mesmo geriátrico. Apesar disso, Tribe e outros viajantes da sonoridade, como De La Soul, Digable Planets e Guru, dos Gang Starr, com a sua lendária série Jazzmatazz, credibilizaram a fusão hip-hop/ jazz.
Hoje em dia, uma nova geração de artistas de jazz tem vindo a emergir, com uma energia completamente nova e referências clássicas e contemporâneas que têm dado à luz projetos de fusão de jazz rap cada vez mais orgânicos, como é o caso de Sour Soul, álbum colaborativo do grupo de jazz BADBADNOTGOOD com Ghostface Killah, dos Wu-Tang Clan.
Por onde começar: A Tribe Called Quest – Excursions
Old school
Em conversa do dia a dia, 'old school' tende a significar qualquer coisa que tenha sido lançada durante ou previamente à infância do ouvinte. Em hip-hop, 'old school' é mais relativo ao som e espírito da própria infância do hip-hop, desde o seu nascimento numa festa do DJ Kool Herc, na avenida 1520 Sedgewick, no Bronx, a 11 de agosto de 1973 até às inovações de scratch de Grandmaster Flash, passando pelos clássicos de Sugarhill Gang, Kurtis Blow, Teacherous Three e Afrika Bambaata.
Por onde começar: Kurtis Blow – The Breaks
Rap rock
Tecnicamente, pode dizer-se que a primeira gravação de rap rock foi Rapture da banda nova-iorquina de new wave Blondie, uma faixa de 1980 que foi ao topo dos 'charts' e contava com um rap encantadoramente estranho de Debbie Harry.
Porém, se quisermos ser puristas temos de referenciar nomes como Run DMC, Beastie Boys ou LL Cool J como os primeiros a misturar rap e rock com sucesso. Um denominador comum entre estes artistas é o produtor, Rick Rubin, que pode ser considerado o pai do género. Bandas como Red Hot Chilli Peppers, Rage Against the Machine, Faith No More, Limp Bizkit e Linkin Park também adotaram flows de rap nas suas músicas. Foi só na última década que o género voltou a dar um novo salto, com híbridos orgânicos como Death Grips e Show Me The Body a dominar o registo.
Por onde começar: Beastie Boys – No Sleep ’Til Brooklyn
Trap
De origens humildes, o trap ascendeu na última década até dominar o hip-hop e muita da música pop contemporânea, com nomes que vão desde 2 Chainz e Migos a Selena Gomez e Ariana Grande a lucrar da sonoridade.
Conceptualmente, as raízes do trap remontam a calão de Atlanta dos anos 80 e 90 usado para referir casas usadas para vender droga, como se pode ouvir em músicas como Keep On Rolling de Kilo Mafia, de 1991. O Trap não emergiu como conceito próprio até que T.I lançou Trap Muzik, em 2003, e Gucci Mane lançou Trap House, em 2005. Por esta altura começava também a ganhar forma como uma síntese de todas as formas de rap sulista que se desenvolveram até à data: uma colisão gloriosa do intenso zumbido de Three 6 Mafia e DJ Screw com os hi-hat agitados de Mannie Fresh e Shawty Red. A ascensão do trap moderno deu-se, no entanto, com o trabalho do produtor Lex Luger no monumental álbum de estreia de Waka Flocka Flame, Flockaveli.
Por onde começar: Waka Flocka Flame – Hard In The Paint